20 de jul. de 2011 | By: @igorpensar

Mundo Amestrado

Por Igor Miguel

Encontrei uma pérola, um trecho da obra "O Mal-Estar da Pós-Modernidade" de Zygmunt Bauman.  Em específico, leio o capítulo  intitulado "Religião Pós-Moderna?", cujo trecho cito e tento explicar logo a seguir:
‎"Sugiro que, em grande parte, a mais importante das realizações da rotina diária é precisamente cortar as tarefas da vida conforme o tamanho da auto-suficiência humana. Tanto quanto a rotina pode continuar não-perturbada, oferece pouca oportunidade para se ruminar sobre as causas e finalidades do universo; os limites da auto-suficiência humana podem ser mantidos fora de foco." (BAUMAN, 1998, p.209-210).
Para a compreensão desse texto é necessário entender basicamente "o que é a modernidade".  A modernidade se caracteriza  basicamente pela ênfase na autonomia (auto-suficiência) e liberdade do homem; também pelo racionalismo, o controle e a técnica.  O homem moderno é aquele que preza pela privacidade e os direitos individuais, pela propriedade privada e pelo controle lógico de tudo.

Hoje, eu mesmo me vejo dentro de um apartamento cheio de artefatos, de "trecos" como: porta caneta, porta CDs, prateleiras, computador, furadeira, celular, ferro de passar roupas, aparelho de DVD, máquina digital, MP3 player, lâmpada de leitura, grampeador, fita durex, caixa de ferramentas, impressora e um monte de "coisinhas", que me dão uma sensação de liberdade, de facilitação da vida, de distanciamento do mundo exterior, e de que não preciso me expor ao mundo e correr riscos, afinal tudo está aqui.  Sabe, este "world of stuff", de artefatos e próteses?  Pois é, me assusto... me assusto.  Pois na verdade, meu apartamento é uma gaiola típica de um hamster que fica na "rodinha" distraído com sua "liberdade" em andar em círculos.

Basicamente é sobre essa "falsa liberdade" que postula Bauman: o homem precisa 'cortar as tarefas da vida conforme o tamanho de sua auto-suficiência'.   Em outras palavras: como o homem moderno não tem liberdade para ir além das paredes de sua vida privada e não se sentir ameaçado, ele faz uma gaiola, um cubículo, um universo restrito, onde ele pode exercer a ilusão de liberdade.   E, ao se entreter com esta "vida privada" e este reino entre quatro paredes, ele se aliena.  Enquanto esta rotina estiver "sob controle", enquanto ele acha que vive em um mundo domesticado, ele nunca vai se preocupar com as questões e os problemas de verdade.

Uma vez que se vive nesta "liberdade privada", literalmente na "caverna" que os gregos denunciaram, no sofisma de uma falsa verdade, pouca oportunidade haverá "para se ruminar sobre as causas e finalidades do universo".  Permita-me: ter-se-á pouco tempo para pensar em Deus, espiritualidade, religião, ética, comunidade, responsabilidade política e existencial.  

A auto-suficiência tem limites e quanto mais eles são testados, mais provocatividade encontra-se nas perguntas: de onde viemos? Para onde vamos?

fotos da gaiola hamster Um problema que atinge a Igreja?  Para ilustrar, conto um caso: algum tempo atrás, ministrando em uma Igreja, um pastor desabafava comigo seus dilemas pastorais.  Me disse que um de seus membros alegara a ausência na "Ceia do Senhor", porque teve que arrumar o guarda-roupas.  Incrível como Bauman me ajudou a entender este cristão relapso.  Ele já não vê na comunidade uma parte integrante de sua identidade cristã.  A modernidade lhe aprisionou, não consegue sair das quatro paredes de sua casa, e se deixou seduzir pelas grades da gaiola e por seu reino particular.  Por isso, ele perde o milagre de comer pão e beber vinho dados graciosamente por Jesus Cristo, porque está sob o encantamento de um universo que pode dominar, ou melhor, que já o dominou.

Com relativa frequência vejo cristãos que não conseguem mais encontrar na Igreja Local um lugar para culto.  Que estão tão acostumados a viverem uma vida "anestesiada", que estão com medo de se arriscarem no amor  e nas tensões inerentes à vida comunitária.  De novo, me utilizo de um dos  apaixonantes conselhos de Dietrich Bonhoeffer:
"Jesus Cristo é o que fundamenta a necessidade de que os crentes tem uns dos outros; [...] só Jesus Cristo torna possível sua comunhão, e finalmente, que Jesus Cristo nos elegeu desde a eternidade para nos acolhamos durante nossa vida e nos mantenhamos unidos para sempre."  (Dietrich Bonhoeffer) 
Enfim, fica aí o desafio de não vivermos uma vida amestrada, e consequentemente nos tornarmos amestrados por seus apetrechos.  O desafio para deixar esta zona de conforto alienante seria desfrutar da exposição da vida pessoal na experiência comunitária, com seus afetos e desafetos.  A vida da comunidade cristã não preserva o corpo, parte o corpo, e fazemos isso em memória de Jesus, que se expôs publicamente em nosso favor, nos oferecendo pão e vinho gratuitamente.

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BAUMAN, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

7 comentários:

Rodrigo Rosa disse...

Saudades desse blog. Bons textos pra fazer a gente literalmente pensar.
Igor, tenho um bom outro exemplo. O carro. Porque temos tantos? Porque, cada um tem o seu e não conseguimos abrir mão disso? Porque não importamos com a "vida comunitária" do transporte quando especialistas cansam de falar que é a solução para o caos do trânsito? Porque deixamos o transporte público aos "pobres" que não conseguem comprar carro? Creio que a senhora auto-suficiência seja a grande responsável disso tudo.
Uma abraço mano, muitas saudades!

Daniella Teixeira disse...

Mano,

Que saudades das suas interpretações, explicações e ensinamentos. Mestre tem que ensinar sempre... e estamos aqui pra aprender (juntos)!!!
Saudades... e beijos p/ Ju!!!

Pri Stofel disse...

Que bom que você lembrou das tensões inerentes à vida comunitária, pois infelismente é isso que tem acontecido nos relacionamentos entre "cristãos". o que é uma pena!
Abraços

Geisa disse...

Como sempre, um texto bem elaborado e bastante reflexivo quanto a sua discrição.
Precisamos sair das "gaiolas" que nos aprisionam em um "mundo paralelo" nos impedindo de valorizarmos as primícias da vida. Amar a Deus, amar ao próximo. Já que, na nossa auto-suficiência, nos esquecemos de ambos e assim nos tornamos "pseudo-humanos" incapazes de perceber as coisas mais simples da vida.

"Nenhum homem é uma ilha isolada..."

John Donne

Paulo Dib disse...

Olá primo. Demorou mas saiu um texto novo, rsrsrsr.

Vida comunitária?? Que isso??
De fato a modernidade tem feito cada vez mais pessoas egoístas, auto-suficientes e isoladas umas das outras.

Quer melhor exemplo do que a internet?? Agora podemos ter tudo com um ou dois cliques, fácil assim.

Amizades cada vez mais superficiais, artificiais, virtuais e cibernéticas. Tem-se 800 "amigos" em redes sociais, mas não se conhece ninguém de fato.

Esse é um dos motivos de eu ter poucos amigos no Facebook e uma lista interminável de solicitações de amizade! Só adiciono quem realmente eu tenho relacionamento.

Como vc bem disse cada homem tem criado um universo próprio. E pior, cristãos estão indo pelo mesmo caminho...

INSTITUTO ABBA disse...

Igor,

Muito bom texto... Essa ilustração do hamster tem invadido meus pensamentos há algum tempo - o controle da modernidade sobre a nossa vida...
Longe de nós o viver assim. Eu quero relacionamento, olhos nos olhos, abraços e muita conversa...
Um abraço meu irmão!

Victor Bimbato disse...

Opa, de volta a ativa? Voltou quebrando tudo. Muito bom, meu caro. Espero que os adeptos da congregação "Deus em Casa" reflitam sobre o texto. É isso. Abraço!