26 de ago. de 2010 | By: @igorpensar

Raízes que Permanecem

Por Igor Miguel

Estou acabando de ler o livro Surpreendido pela Esperança de N.T. Wright e fiquei muito feliz em encontrar insights teológicos que já vinha escrevendo e ensinando desde 2001, e claro, muita coisa nova que não tinha se quer lido. Mas de fato, fui surpreendido pela "Esperança" e isto tem mais sentido do que o leitor, que passa por aqui, pode imaginar.

Como alguns sabem, venho dedicando alguns anos de minha vida em um esforço para manter o equilíbrio apropriado nas relações entre a teologia cristã e a teologia judaica. Entretanto, o mais difícil é este equilíbrio, afinal, ou supervalorizamos a herança judaica, ofuscando a centralidade de Cristo e os valores do cristianismo, ou supervalorizamos a tradição cristã de forma dogmática e seu anti-judaísmo não tratado, sem permitir que esta fé cristã seja enriquecida com um contato apropriado com suas raízes.


Ao ler alguns autores do cristianismo que entendiam os vínculos entre judaísmo e cristianismo, percebi, que não são poucos os estudiosos do meio cristão engajados nesta compreensão e que no final das contas, admitiam que um bom cristianismo não pode ignorar estes fundamentos. De fato autores como Oskar Skarsaunne, Francis Schaeffer, N.T. Wright, Brad Young, James Parkes, W.D. Davies e muitos outros, me surpreenderam quanto a esta abordagem.

O que me preocupa é o tom ácido adotado por algumas pessoas envolvidas neste tipo de diálogo. O que excetua os autores citados acima. Pois ao não serem cuidadosas com sua pretensa agenda teológica, acabam atingindo o único movimento historicamente constituído que pregou, carregou, anunciou Jesus Cristo por quase dezoito séculos. Neste ponto, tenho que ser honesto: não foi o judaísmo que se encarregou desta tarefa. Entretanto, será que o cristianismo rejeitou tanto assim suas raízes judaicas como escutamos frequentemente no senso comum?

Ora, que rejeição "total" é esta? Afinal, vejamos alguns elementos evidentemente judaicos ainda presentes no cristianismo:

Jesus Cristo: pode parecer óbvio, mas um obviedade omitida por muitos. Jesus Cristo é o que há de mais judaico no cristianismo. A afirmação de Jesus como salvador e Senhor tem origem nos profetas judeus, algo que os pais da Igreja e os reformadores, por mais "anti-judaicos" que fossem, jamais renegaram, Jesus é o cumprimento das palavras do profetas da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento). Sem mencionar que Ele descende dos judeus segundo a carne (como afirma Paulo) e seus vínculos com este povo não é em vão. A propósito, se não houvesse nenhum vínculo genético entre Jesus e o povo judeu, isto tiraria todo crédito de seu papel messiânico.

Os Apóstolos: não há dúvidas, de que ao afirmar a fidelidade cristã à doutrina dos apóstolos, afirma-se com isso, uma fidelidade a apóstolos judeus, oriundos da terra de Israel, que foram convocados por Cristo propositalmente dentre os filhos de Israel, por questões óbvias, o que reserva maiores explicações.

A Bíblia: em especial o protestantismo, neste sentido, foi tão fiel a seus fundamentos judaicos, que adotou o cânon rabínico do Antigo Testamento, instituído no Conselho de Jamnia (Iavnnê), rejeitando o cânon grego (Septuaginta/LXX), que incluía os livros chamados "apócrifos". Neste sentido, a reforma teve profunda reverência ao que fora produzido pelo judaísmo. Não há nada mais judaico no cristianismo do que admitir um cânon de livros sagrados, compostos em sua quase totalidade por autores judeus (exceto Lucas). Apesar de que há um debate sobre as intensões judaicas (em Jamnia/Yavne 90 d.C.) sobre este cânon.

Liturgia: Elemento litúrgico cristão importante é a homilia, a leitura e explicação pública das Escrituras, eis uma prática oriunda das sinagogas judaicas, de um momento chamado de kriát Torá (leitura da Torá), sem mencionar os cânticos e recitações de confissões, credos e perguntas catequéticas, que remetem a própria forma rabínica de estudo (perguntas-e-respostas).

Ceia (eucaristia): o cristianismo, em geral, reconhece ao menos dois sacramentos com raízes no judaísmo: a ceia e o batismo. A primeira nasceu do Sêder judaico de Páscoa (pêssach). Curiosamente, a utilização de vinho, por exemplo, não tem origem bíblica, mas foi inserida no judaísmo pelo famoso rabino Hilel, é irônico como mais tarde, a eucaristia cristã eternizou e universalizou uma prática da tradição oral judaica. Sobre os vínculos entre a ceia e a tradição judaica, vale a observação de N.T. Wright:

[...] quando Jesus celebrou a Páscoa, os discípulos não imaginavam que estavam fazendo algo diferente da celebração original. Durante a celebração da Páscoa, os judeus costumavam dizer: "Esta é a noite em que o Senhor nos tirou do Egito", o que torna as pessoas sentadas ao redor da mesa não apenas herdeiros distantes da geração do deserto, mas também parte do mesmo povo. Tempo e espaço se unem. No mundo dos sacramentos, passado e presente são uma só coisa. Juntos, eles apontam para a libertação, que acontecerá no futuro.[1]

Batismo: Herança de uma longa tradição de imersões rituais presentes na prática judaica de purificação. Basta uma olhada no testemunho arqueológico ao redor do Monte do Templo em Jerusalém e em lugares como a região de Qunram no Mar Morto, que se saberá os verdadeiros fundamentos desta prática. A tevilá (imersão em hebraico) era uma prática largamente utilizada inclusive nas cerimônias de conversão ao judaísmo. Sendo um rito de passagem e renúncia ao passado pagão. Prática que foi incorporada pelo cristianismo e resinificada, quando assumiu a forma de sacramento.

Calendário: não parece, mas Igrejas Cristãs históricas ainda preservam um calendário litúrgico, com celebrações como páscoa e pentecostes. Celebrações de profunda relevância para a narrativa evangélica oriundas da cultura do povo judeu.

Poderia citar ainda muitos outros pontos e práticas cristãs que estão lá enraizadas na cultura judaica, mas, resignificadas e contextualizadas à novas circunstâncias culturais. Afinal, apesar do cristianismo originar-se entre os judeus, ainda assim, o cristianismo é uma outra coisa, não pode ser judaísmo, mas é judaico em seu fundamento.

A propósito, o termo "judaísmo" após o ano 90 d.C. (como já discutido em um post por aqui), assume conotações complicadas para a fé cristã. Associar-se ao judaísmo após este período tornou-se insuportável. O judaísmo tinha assumido uma agenda explicitamente apologética a respeito de tudo que se referia a Jesus e a seus seguidores. O judaísmo assumiu uma agenda político-revolucionária contra o império romano, o que não podia ser amparado pela comunidade cristã, crescentemente menos judaica e mais gentílica. Sem contar que a fé proposta por Jesus, desde o início, não tinha pretensões revolucionárias em termos políticos, como claramente afirmado por ele. A inserção de orações litúrgicas que ofendiam a fé "nazarena" tornou a tensão Igreja-Sinagoga cada vez mais complicada, a ruptura seria inevitável e providencial, naquele momento histórico, como já demonstrei no post acima mencionado.

Lembro-lhes, que a proposta deste artigo é deixar claro, que admitir e dialogar estas duas tradições, não significa assim, que o cristianismo deva abrir mão de sua herança histórica, de sua identidade e tornar-se uma sinagoga. O que seria literalmente uma aberração cultural e traria sérias implicações teológicas como: tensões identitárias, sobrecarga cultural judaica em ambientes não judaicos, elementos litúrgicos de um judaísmo resistente a Jesus (judaísmo rabínico) e a temida judaização etc. Porém, o diálogo é importante e o conhecimento de uma visão de mundo judaica, enriquece hermeneuticamente a compreensão das Escrituras e da própria espiritualidade cristã.

Cito agora, um trecho traduzido do artigo do Dr. Daniel Juster, renomado líder e judeu-messiânico (judeu que crê em Jesus como Messias) americano a respeito das relações entre o cristianismo e suas raízes judaicas:

No entanto, muitas pessoas que acusam a Igreja de ser pagã, me deixam com "a pulga atrás da orelha". Eles precisam entender que uma tradição ou ritual deve ser entendido de acordo com o significado que lhe é dada pela comunidade de praticantes. Nem mais nem menos. O culto dominical, por exemplo, independentemente das razões como ele surgiu no I século, ele é hoje universalmente entendido como uma festa que comemora a ressurreição de Yeshua (Jesus) no primeiro dia da semana. Muitos gentios, que pensam que estão descobrindo as implicações das raízes judaicas e, ao mesmo tempo, criticam a Igreja, simplesmente não têm um conhecimento profundo do patrimônio da Igreja. Na verdade, às vezes, a questão de uma restauração apropriada das raízes judaicas deveria começar por levantar a consciência das raízes judaicas mantidas pela Igreja agora. Fonte: Rediscovering the Roots that Remain (Redescobrindo as Raízes que Permanecem): http://www.tikkunministries.org/newsletters/dj-nov09.asp

Se desejamos aproximar estas duas tradições, ela deve ser feita sem fundamentalismo, com bom senso, com conhecimento apropriado do patrimônio da Igreja, levando-se em consideração o que a Igreja produziu em seus quase dois milênios de existência, tratando o anti-judaísmo que trouxe consequências já conhecidas (cruzadas, pogrons, holocausto etc) e claro explorando as raízes judaicas já preservadas pela Igreja.

Tenho críticas a uma "neutralidade" teológica, como se fosse possível acessar a Bíblia sem considerar a herança hermenêutica de gerações. Em breve escreverei um texto sobre a relação entre "tradição" e "revelação", infelizmente na atualidade, muito da crise cristã evangélica deve-se a isto: uma rejeição moderna a tudo que é tradicional.

Para terminar, cito a conclusão de Oskar Skarsaunne (teólogo luterano) em sua obra monumental "À Sombra do Templo", a respeito do tema aqui tratado:

A triste história do anti-semitismo cristão é bem conhecida e bem documentada. Contudo, houve em muitas ocasiões, e nos lugares mais inesperados, uma tendência implícita em sentido contrário. Não devemos, é preciso enfatizar mais uma vez, exagerar sua força; entretanto, não se pode também subestimá-la. Para os cristãos que, no início do século 21, sentem-se estimulados e fascinados com a redescoberta das raízes judaicas de sua fé e prática, é importante que saibam que não foram eles os primeiros. Houve precursores, e esperamos que haja sucessores.[2]

_______________
[1] WRIGHT, N.T. Supreendido pela Esperança. Viçosa: Ed. Ultimato, 2009, p.288.
[2] SKARSAUNNE, Oscar. À Sombra do Templo: as influências do judaísmo no cristianismo primitivo. São Paulo: Ed. Vida, 2004, p. 460.

6 comentários:

Daniel Ben Iossef disse...

shalom, Igor!

Tenho lido este livro - à sombra do Templo - e me maravilhado com o quanto perdemos, infelizmente, as nossas raízes.

Como cristão, pessoalmente sinto-me mais amparado por uma teologia que dialoga com as duas tradições (pessoalmente, claro... pois a Igreja evangélica no geral ignora isso), o que nos traz realmente um maior grau de entendimento do mundo que nos cerca.

Pessoalmente, tenho aplicado no ministério de homens aqui na Igreja local o estudo da Torá (não com este nome, mas no estudo de porções semanais da Palavra), e tem sido maravilhoso experimentar este compartilhar da Palavra, mesmo sem os títulos judaicos que o acompanham.

Por último, não imaginava que o vinho na celebração de Pesach é de origem haláquica...que loucura!

Grande abraço,

Daniel

Unknown disse...

É isso ai Igor... Cristianismo é o receptáculo da revelação plena de Deus ao Mundo - Jesus Cristo. O Judaísmo, por mais bíblico que seja, parou no segundo século d.C e não recebeu o verdadeiro Messias em seu bojo. A religião judaica, de lá para cá, se institucionalizou, se estabeleceu como uma religião formativa e normativa e colocou debaixo de escombros tudo que refletisse ou insinuasse alguma coisa com a fé do Novo Testamento.

Por isso, pensar em raízes do Cristianismo, é pensar em certa medida conforme àquela fé dos judeus galileus crentes de Eretz Israel, na época do Segundo Templo e os nãos-judeus que se agregaram a eles. E, rejeitar o Cristianismo, é rejeitar o judaísmo "liberado" por Deus às Nações (tendo como centro o Messias Jesus) e, como você afirmou, supervalorizar uma herança judaica muitas vezes desvirtuada, tardia em relação à interpretação bíblica original, até mesmo anti-cristã e medieval.

Abraços!

INSTITUTO ABBA disse...

Ler este post me deu uma alegria enorme! Igor, você expressou exatamente o que pensamos e não conseguimos muitas vezes expor tão claramente. Obrigada.
Queremos caminhar neste equilíbrio. Não queremos esquecer nossas raízes judaicas e queremos caminhar conforme a fé da comunidade do primeiro século, trazendo para os nossos dias os princípios de moral e ética que fazem tanta falta, sem deixar de fluir no Espírito, sempre disponíveis à ação do Senhor em nossas vidas.
Um grande abraço.
Beth

Rodrigo Moraes disse...

Excelente posicionamento, meu caro.
O que mais me espanta é a confusão que sempre foi criada na mistura das duas alianças.

Ou tentam anular a primeira para implantar a segunda (dispensacionalismo);

Ou tentam desdenhar a segunda para abraçar a primeira (judaizar);

Ou tentam sair da primeira para ir para a segunda (proselitismo e aniquilação da raça judaica);

O mais difícil é aceitar que Deus criou alianças eternas, e chamou alguns para cada uma delas. A briga de Atos 15 continua até hoje...

Abraços!

Unknown disse...

Shalom Mano

Você uma referência bibliográfica para essa afirmação que foi Hillel quem introduziu as taças de vinho. Eu achei isso muito interessante e fiquei curiosa. Vou roer todas as minhas unhas se não ficar sabendo onde isso está escrito na literatura judaica. Eu sei que o Talmud Bavli menciona as taças mas não encontrei onde.

Thiago disse...

Muito bom este post Igor! Deu para clarear mais o entendimento!