28 de mai. de 2009 | By: @igorpensar

Natashenka

Por Igor Miguel

Uma notícia surpreendente me atingiu em cheio hoje quando lí o título de uma matéria do Jornal Zero Hora com o seguinte título: "Menina era criada junto com cachorros". Eu já tinha ouvido falar de casos similares. Crianças que viviam confinadas em casas, barracos ou outro espaço, cujo convívio social era restrito, as vezes conviviam com animais, completamente isoladas de outros seres humanos ou pouco contato com humanos e que quando tinham algum convívio social apresentavam um comportamento animalizado.

Isso foi o que aconteceu com Natashenka. Uma menina russa de 5 anos, residente na Sibéria que vivia em um apartamento confinada com cães e gatos e que apresentava um comportamento similar aos dos animais com quem convivia. Segundo a matéria, ela arranhava e emitia sons similares a gatos e cães.

Talvez o que chame mais a atenção neste artigo, seja o sentimento de revolta ou o desconforto ao vermos um pai que abandona sua filha neste estado, etc. Certamente, este é o objetivo da matéria: chocar.

Porém, a violência do tratamento que a menina Natashenka recebe não concentra-se no espetáculo de horror envolvido no abandono ou como foi encontrada, não é simplesmente o abandono. A pior agressão, foi sua privação de humanidade.

Diferente de outros seres existentes no mundo, o homem é um ser 'dependente' de educação. Ele precisa ser 'instruído'. O homem não nasce com instinto ou programado. Ele precisa ser instruído, carece migrar do estado de ser 'biológico' para o estado de ser-humano em toda sua integridade.

Misterioso pensar que o homem é este ser, que para ser, precisa do outro. Sem o outro, ele nunca é plenamente ele mesmo. Isso levanta um problema interessante. Se precisamos tanto do outro, se dependemos tanto de relacionamento, por que o mundo moderno enfatiza tanto a singularidade, a individualidade e a solidão?

Essa é a contradição! Natashenka é a evidência mais forte, é a expressão mais explícita desta privação do outro. Mas, quantos de nós não somos 'menos-humanos' em maior ou menor grau? Quantos de nós nos isolamos ou isolamos o outro e nos arranhamos em nossos guetos? Quando trocamos esse contato com o humano, pela mídia de massa, pela TV, pelas interações interfaceadas por objetos, não estamos tirando a alma ou abstraindo nossa humanidade?

Natashenka tinha tanta sede pelo outro, que se abriu ao que tinha (gatos e cães) e absorveu o que eles lhe apresentavam. Porém, quem é o nosso outro? Quem é ou quem são estes que matam nosso desejo de ser? Com quem seremos parecidos, quem nos fará a sua imagem e semelhança?

Dolorido pensar, que as vezes, no lugar de cães e gatos, temos nos domínios de nossas relações pessoas egoístas, impulsivas, manipuladoras ou arrogantes. As vezes, a antiga e não antiquada ética bíblica, dizia '... não se assente na roda dos escarnecedores...' (Salmo 1), era uma antiga advertência ao risco de que certas relações sociais não são adequadas.

Eu preciso do outro humano, do outro plenamente humano. Mas, se outro não estiver lá como homem, mas como coisa e que já assumiu a vida animalizada, impulsiva e imediatiazada, como redimí-lo? Como trazê-lo para a vida?

A pergunta é: Se o homem é um livro que está aí para ser escrito, o que pode ser escrito nele? Que palavras podem ser usadas? Que caligrafia usar? Quais caracteres? Que idioma? Que escritor ou escritores podem compor minha biografia?

Natashenka foi jogada aos cães e nós fomos jogados a quem? Natashenka está possuída pelos gatos que a mediaram e quem vai me mediar? Quem ou que permitirei que entre em minha consciência?

São várias perguntas, que desencadeiam uma série de possibilidades. Sinceramente, o que precisamos para continuar plenamente humanos é de sabedoria.

Estudando provérbios, deparo-me frequentemente com o termo 'sabedoria' (em hebraico 'chochmá'). Interessante pensar que 'sabedoria' para o hebreus, não tem a conotação que os gregos davam para 'sofia' (sabedoria em grego). Para os gregos, a sabedoria teórica determinava um comportamento virtuoso. Para os hebreus 'saber' e 'viver' são faces indissociáveis da mesma moeda. Sabedoria é o 'saber-viver', que realizar-se plenamente no mundo é a consciência de se estar presente na vida.

Sabedoria é transmitida de humano para humano, funda-se na tradição e na memória. A sabedoria vem de alguém, que recebeu de alguém e que foi passando pelas gerações. Sabedoria e tradição ligam-se, fundem-se. Animais não podem produzir tradição, pois são imediatos, estão ligados às necessidades imediatas de seu instinto. Nós homens, somos 'mediatizados' pelo outro, pelo símbolo, pela palavra e pela presença do 'mediador' cultural: o outro.

O pai dá significado, a mãe dá significado, mestres dão significados e nos ensinam a 'saber-viver', pois são mediadores entre a realidade bruta e a realidade pensada.

O mundo moderno derrubou a figura paterna, a idéia do sábio ancião, do "velho barbudo" cheio de experiências de vida e segredos do passado. A voz da vovó não pode ser ouvida, a faculdade não deixa, a ciência roubou o direito dos sábios. Nos perdemos, pois perdemos a memória, perdemos o desejo de ouvir o humano. Trocamos a sabedoria, pelos grunidos, ruídos, latidos e mios de um mundo cada vez menos humano, cada vez menos à imagem e semelhança de Deus.

O convite inevitável é: Sente-se aqui, quero te ouvir. O que pensas? O que podes me dizer? Fale-me alguma coisa! Precisamos ouvir, precisamos conversar mais. Precisamos discernir o que nos é posto como verdade. Julgar a realidade sem piedade, não aceitar qualquer som ou imagem que nos impõem. Discernir o tempo e o espaço, a música e a imagem, pedir ao vovô para me explicar o azul do céu, a imensidão do mar e pedir que minha mãe me explique a razão da vida.

4 comentários:

Kelly disse...

Eu li a reportagem sobre essa menina, realmente chocante...a prova de que precisamos e muito uns dos outros!!!!

Deus abençoe

@igorpensar disse...

Olá Kelly,

Tudo bem? Natashenka nos ensina algo um pouco mais profundo. Nos ensina que modelos de sociedade firmados no coletivismo podem ser perigosos quando não levam em consideração a individualidade e a dignidade da 'pessoa' (ex. comunismo). Por outro lado, nos ensina, que modelos de sociedade fundados no individualismo (liberalismo capitalista), priva o sujeito de sua presença com o outro no mundo e na sociedade. O modelo ético teísta nos ensina o modelo comunitário: individualidade e coletividade: Eu-Tu (Martin Buber).

Continue pensando...

Jerusa disse...

A quesrão da identidade, da identificação com o outro é relmente séria. atualmente vi uma outra reportagemonde um sujeito ensinava duas crianças a assaltar usando arma e uma boneca.Questiono: Uma foi privada da humanidade se identificando com cães e se comportando como eles. As outras duas crianças também estão sendo privadas da humanidade pois estão se identificando com um monstro disfarçado de ser humano. Fica a pergunta: Qual dos dois casos é o pior??????
Abraços.....Jerusa é

Kety Daiana disse...

Olá Igor!
Vim agradecer a visita ao meu blog e retribuir comentando.
Parabéns pelo artigo e reflexão. Gostei do blog como um todo, conteúdo que é essencial é que encontrei aqui e de qualidade.

Sobre Natashenka realmente não é o primeiro caso, tem a lenda da criança (ou crianças não me lembro) criada por uma mãe loba ou algo assim. Nesses casos essas crianças geralmente não podem / não conseguem serem civilizadas e inseridas na organização comunitária humana. E este fato também leva a reflexão sobre a própria importância da educação das crianças o que faz paralelo com um artigo meu sobre isso no meu blog.

Como a vida pode-se dizer é um 'eterno' aprendizado, como adultos realmente também precisamos uns dos outros. Mas nos tempos atuais tem sido tão difícil manter vinculos e fortalece-los a cada dia... Nossas organizações sociais e os valores adotados nelas estão cada vez mais decadentes e estimulando a individualidade exarcebada. Um pesar.