26 de ago. de 2010 | By: @igorpensar

Arte e Ciência por Calvino

Por João Calvino, reformador, século XVI d.C.

Enquanto isso, não esqueçamos, porém, que estes são mui excelentes dons do Espírito Divino, os quais, para o bem comum do gênero humano, ele dispensa àqueles a quem quer. Ora, se a Bezalel e a Ooliabe foi indispensável que se instilassem neles, pelo Espírito de Deus, a inteligência e o conhecimento que se requeriam para a construção do tabernáculo [Ex 31.2-11; 35.30-35], não é de admirar caso se diga que nos é comunicado através do Espírito de Deus o conhecimento dessas coisas que são mui relevantes na vida humana.

Nem há por que alguém pergunte: Que os ímpios, que se alienaram totalmente de Deus, têm a ver com o Espírito? Ora, quando lemos que o Espírito de Deus habita somente nos fiéis [Rm 8.9], é preciso que se entenda isso como referência ao Espírito de santificação, através de quem somos consagrados por templos ao próprio Deus [1Co 3.16]. Entretanto, nem por isso menos preenche, aciona, vivifica a todas as coisas pelo poder do mesmo Espírito, e isso segundo a propriedade de cada espécie, a que a atribuiu pela lei da criação. Pois se o Senhor nos quis assim que fôssemos ajudados pela obra e ministério dos ímpios na e nas demais áreas do saber, física, na dialética, na matemática façamos uso delas, para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, caso negligenciemos as dádivas de Deus nelas graciosamente oferecidas.

Mas, por outro lado, para que alguém não julgue ser o homem sumamente ditoso, quando se lhe concede tão grande poder de compreender a verdade sob os elementos deste mundo, deve-se, ao mesmo tempo, apreender que não só toda esta capacidade de compreensão, como também a compreensão que daí resulta, é coisa sem consistência e sem estabilidade diante de Deus, quando não subjaz nela o sólido fundamento da verdade. Pois, com muita procedência ensina Agostinho, a quem, como dissemos, o mestre das Sentenças e os escolásticos foram obrigados a subscrever: como, após a queda, foram subtraídos ao homem os dons graciosos, assim também foram corrompidos estes dons naturais que lhe restavam. Não que, até onde procedem de Deus, possam de si mesmos corromper-se, senão que ao homem corrompido deixaram de ser puros, de modo que daí não logre ele algum louvor.

Fonte: As Institutas, Livro II, Capítulo II, Cap. 16 (grifo nosso).

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Uma AnálisePor Igor Miguel

O que me impressiona neste texto de João Calvino é a forma responsável com que nega a percepção escolástica de que aquilo que é produzido por não-cristãos não tem graça, o que incluiria a cultura, o trabalho e a ciência humana em geral. Calvino refuta isto, asseverando que uma percepção apropriada da "lei da criação", aquilo que muito mais tarde Herman Dooyeweerd chamaria de cosmonomia, testemunha que há uma graça comum de Deus despejada na criação. O que significa que a habilidade humana em geral deve ser reconhecida como graça, dádiva divina, e não fruto de uma auto-dotação.

Entretanto, Calvino chama a atenção para o fato de que com a queda, o homem se corrompeu, por isso nem tudo que o homem produz consegue expressar a perfeição e santidade de Deus. Aquilo que estes homens produzem, mesmo que operados pela graça, podem estar comprometidos pelo pecado no homem.

Porém, no parágrafo anterior a este, o reformador genebrino assevera que o cristão não deve ser negligente, antes deve encarar as ciências e as artes, como dádivas, que devem ser desfrutadas, porém com a consciência do trecho posterior. Daí, a necessidade de discernimento do cristão ante ao que o mundo produz.

João Calvino no século XVI, à luz de sua habilidade hermenêutica, não concordaria com a abordagem pietista e legalista presente em alguns círculos evangélicos da atualidade, de que aquilo que é produzido por "mundanos" e "ímpios" não deve ser desfrutado, como a música, a arte, o conhecimento científico. Hoje, o reformador alertaria os cristãos a não serem relapsos, mas que aprendessem a desfrutar destas boas dádivas, sem esquecer porém, que há imperfeições, manchas, que precisam ser discernidas, julgadas e analisadas à luz da boa consciência cristã.

Enfim, a espiritualidade reformada neste sentido não isola o santo do mundo, mas também não permite que ele seja absorvido por ele. Antes o insere lá, porque há graça lá. Porém, o insere consciente de que deve discernir seu tempo, os conhecimentos, tornando-o sóbrio a respeito das consequências da queda.

Soli Deo Gloria
Kol HaKavod LaShem

13 comentários:

Maurílio Appolonio disse...

Shalom Igor,
Compreendo e corroboro com este pensamento.
O D'us de infinita misericórdia não priva a humanidade de desfrutar da graça criativa que emana Dele, e mesmo o ser humano mais corrompido é capaz de riscos ou rabiscos de amor que revelam o milagre do Éden.
Abraços, Maurílio.

@igorpensar disse...

Maurílio, fala que isto não é lindo? E o mais legal, é que o impacto desta teologia no século XVI resultou em vários bens para a humanidade. Muitos dos primeiros cientistas e acadêmicos da modernidade emergiram dos círculos reformados, justamente sobre inspiração de que a Bíblia tem uma orientação para a vida. Não é legal?

Fernando Oliveira disse...

Muito interessante, mano! E é incrível a Escolástica ir de encontro ao que os primeiros pais da Igreja faziam. Ou seja, como lembra o medievalista Jean Delumeau, em seu primeiro volume e livro "The History of Paradise", Tertuliano, Orígenes, etc., por exemplo, viam os Campos Elísios e a Idade de Ouro (ao modo e entendimento restritivo dos pagãos)como uma leitura greco-latina do Gênesis bíblico. Quem confirma isso é próprio Dante Alighieri, que era um fiel cristão católico de seu tempo. Na Divina Comédia, Dante mesmo fala que os poetas da antiguidade clássica falaram, a seu modo, do Éden. O que quero dizer é que podemos ver fragmentos da verdade divina em obras de não-cristãos e não-judeus.
Um pastor que confirma o que Calvino ensinou é Ricardo Gondim, em seu livro "É proibido: o que a Bíblia permite, mas a igreja proíbe". Nele, fala do conceito de Graça Comum e o modo como o pecado não destruiu, de todo, a imagem e semelhança divinas no ser humano pós-queda edênica, de modo que podemos ver o sagrado/divino em poemas que o Gondim cita de Drummond e Fernando Pessoa, por exemplo. Parabéns pela postagem e apreciação do texto de Calvino!

Daniella Teixeira disse...

Olá Igor...
Perfeito!!! Justamente o que temos tentado passar aos nossos amigos cristãos e não-cristãos.
As boas dádivas mesmo oriundas do ‘mundo’ contém são recheadas do perfeito amor de Deus, ou então seríamos individualistas o suficiente por acreditar que Deus só se encontra no que é santo, e tudo fora disso estaria corrompido.
E é esse amor que nos dá o discernimento para colhermos o trigo e não sorvermos o joio. Como é que pode ser dito que as dádivas Deus não se encontram aqui:

Dia de luz
Festa de sol
Um barquinho a deslizar
No macio azul do mar
Céu tão azul
Ilhas do sul
E o barquinho é um coração
Deslizando na canção
Tudo isso é paz
Tudo isso traz
Uma calma de verão e então...
(O Barquinho)

Ou aqui:

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
(Se eu quiser falar com Deus)

Com espiritualidade reformada e consciência da graça de Deus,
Daniella.

Anônimo disse...

É que é mais difícil ensinar a ter discernimento do que definir o que é "santo" e "profano" né? Já ouvi muito "água e óleo não se misturam" ou "porventura deita alguma fonte de um mesmo manancial água doce e água amargosa?" e por aí vai...
Como é bom viver se encantando com a graça e simplicidade de Deus, não?
Que venha Seu Reino - por inteiro.

@igorpensar disse...

Que lindo Daniella, tá vendo? O que me preocupa é que com a preocupação de preservar os crentes do "mundo", acabaram isolando-o de lá, tornando-o, por incrível que pareça, mais vulnerável. Ao invés de ferramentá-lo para entrar com as armas da Palavra, no poder do Espírito, para testemunhar de forma criativa o Evangelho do Reino de Deus.

Dan, vc está certa, ensinar discernimento dá mais trabalho, muito mais trabalho, do que colocar todo mundo no curral gospel, desculpem-me pelo tom irônico, mas é verdade.

Paulo Dib disse...

Igor,

Embora tenha alguns pontos que eu não concorde com Calvino, como o Monergismo, por exemplo, este é um ponto que eu não ousaria discutir.

Concordo em gênero, número e grau de que a separação pietista entre "santo e profano", é algo totalmente inconcebível.

Todo o dom criativo presente no homem é fruto daquilo que Deus liberou desde a criação. Logicamente, a criatividade nem sempre é usada p/ produzir coisas boas. Daí, sim, cabe o nosso discernimento e bom siso para filtrar aquilo que nos edificará.

Em alguns meios cristãos vc ouve frases do tipo: "fulano ouve músicas do mundo". Fico a me perguntar o que é "música do mundo?". E o mais engraçado é que esse tipo de frase muitas vezes vem de pessoas que assistem novelas da Globo.

E fica a questão: qual é a diferença?

@igorpensar disse...

Fala primo Dib,

Pois é maninho. Esta é uma boa pergunta, excelente pergunta. Sem mencionar que muitas músicas ditas "cristãs" louvam o ego humano, são focadas em necessidades pessoais, hedonistas, narcisistas e por aí vai.

Um abraço grande!

Valeria disse...

Olá Igor! Talvez seja por isso que os evangélicos sejam tão "pobres" e desprovidos de sabedoria. É uma pena que muitos Sociológos, Cientistas, Poetas, Compositores se percam em suas buscas desvinculadas de Deus. Mas a virtude de reconhecer a própria miséria humana, as vezes, é melhor de se ouvir do que esse "evangeliquês" soberbo e destonado dos nossos dias. Pegando uma carona com a colega Daniela, vou postar um trecho da música "Monte Castelo"

"O amor é o fogo
Que arde sem se ver
É ferida que dói
E não se sente
É um contentamento
Descontente
É dor que desatina sem doer...

É um estar-se preso
Por vontade
É servir a quem vence
O vencedor
É um ter com quem nos mata
A lealdade
Tão contrário a si
É o mesmo amor...

Estou acordado
E todos dormem, todos dormem
Todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade...

Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria..."

Composição: Renato Russo (recortes do Apóstolo Paulo e de Camões).

Unknown disse...

Muito bom Igor! Poderemos dar agora graças ao Deus Eterno, por Ele ter concedido a graça Dele sobre nós, para usufruirmos de seus frutos dela em todas as obras dos homens. E nossa função, então, é redirecionar as graças que os homens dão às coisas e a si mesmos, quando veem a beleza das coisas e obras feitas, para o Galardoador da graça sobre eles.

Abraços mano!

@igorpensar disse...

Valéria, obrigado pela contribuição com mais um poema. Eu fico pensando, quantos artistas, poetas e cientistas, tecnólogos e filósofos cristãos o mundo perdeu, por causa de uma teologia escapista e dicotômica. É uma pena... Mas, que Ele (Deus) levante vocacionados para este tempo.

Lissânder disse...

Muito bom!

Lissânder disse...

Muito bom!