25 de mar. de 2013 | By: @igorpensar

Páscoa: vencido e vencendo

Por Igor Miguel

A raiz da palavra hebraica para Páscoa* quer dizer "passar sobre".  Uma referência à passagem do anjo sobre o Egito, ferindo os primogênitos.  Páscoa é uma celebração importante, até hoje faz parte do calendário judaico e cristão.   Porém, entre cristãos, ela teve seu sentido dirigido ao evento da crucificação, sepultamento e ressurreição de Jesus Cristo.


As conexões são fortes.  Jesus é identificado no Novo Testamento e na tradição cristã como o "Cordeiro de Deus" ou Agnus Dei, uma referência ao cordeiro que era sacrificado durante a páscoa israelita.   Jesus Cristo se torna o inocente "cordeiro sem defeito de um ano" (Ex 12) que foi entregue pela libertação do povo.  Como foi dito pelo sacerdote Caifás: "Vos convém que morra um só homem pelo povo e que não venha a perecer toda a nação" (Jo 11:50), uma frase ambígua, que acabou se tornando uma profecia.


Não sei se algum dos leitores já viu o abate de um cordeiro.  Eu já vi.  Também já vi o abate de porcos uma vez.  E a diferença é impressionante.  Porcos lutam para não morrer, gritam e esperneiam.  Já cordeiros, ficam em absoluto silêncio.  Na ocasião, parecia que o cordeiro já sabia que iria morrer.  Parecia que ele estava pronto para seu destino.  Entendi a frase bíblica: "como ovelha muda perante seus tosquiadores" (Is 53:7).  O cordeiro fica absolutamente mudo.  O corte na jugular é definitivo e ele se entrega passivamente à morte.

Muitas pessoas podem alegar que nós cristãos nos gloriamos de uma coisa feia: a crucificação.  Aquilo ali não pode ser considerado um triunfo, mas uma derrota radical, alguns poderiam alegar.  Vaias, cusparadas, navalhadas, nudez, cravos e coroa de espinho.  O Filho de Davi não está no trono, está na cruz.  Como diria o hino clássico: "um emblema de vergonha e dor".

Na cruz e no esvaziamento, Deus estava anunciando que Ele, mesmo em sua fraqueza, é mais forte do que todos os poderosos deste século.  Cristo triunfou sobre o mal absoluto, não há mal no mundo comparado à morte inocente de Cristo.  Ele não era um simples homem, era o Filho de Deus, gerado de seu amor desde a eternidade.  E agora, lá estava ele, o mais inocente, puro e justo dentre todos no universo, exposto e vítima de nossa corrupção e maldade.  E, um pequeno e grande detalhe: fez tudo aquilo por puro amor incondicional. Ele amou os que o repudiavam.

Compartilho esta reflexão pascal com os seguintes ditos do saudoso John Stott em sua obra "A Cruz de Cristo":
O que parece (e deveras foi) a derrota do bem pelo mal, também é, e mais certamente, a derrota do mal pelo bem. Vencido, ele estava vencendo. Esmagado pelo poder inflexível de Roma, ele mesmo estava esmagando a cabeça da serpente (Gênesis 3:15). A vítima era o vencedor, e a cruz ainda é o trono do qual ele governa o mundo.
Uma boa reflexão e um edificante tempo pascal.
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* פסח [pêsakh]
22 de mar. de 2013 | By: @igorpensar

Jesus e o Poder [áudio]

 
A história da humanidade vem sendo marcada por disputas de poder.  Somos fascinados com a possibilidade de sermos "autônomos" e de "brincarmos de deuses".  A narrativa Bíblia afirmará que todo poder pertence a Deus.  Porém, quando Deus entra na história por meio de Jesus Cristo, como ele exibe seu poder?  Em absoluta fraqueza. Assim, Deus mostra aos homens que aquele que tem o verdadeiro poder, até em sua fraqueza, é mais poderoso do que o mais poderoso entre os homens.  Desta forma, Deus restitui a dignidade e a posição original de Adão, porém, por meio do "segundo Adão", Jesus (Rm 5).  A cruz é um golpe frontal em nossas pretensões humanas.  Denúncia e a vitória concentram-se no evento páscoa.  A paixão se torna uma demonstração universal de quem Deus é quem nós somos.

Você pode ouvir esta ministração na íntegra abaixo ou baixá-la em MP3 e ouvir em seu mp3-player.







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17 de mar. de 2013 | By: @igorpensar

Bento XVI: ortodoxia e missão

Por Igor Miguel

Li algumas palavras do gigante da teologia reformada Herman Bavinck (1854-1921).  Ele fez importantes críticas ao catolicismo romano, principalmente naqueles pontos divergentes com a fé reformada.  Ainda assim, ele insistia que cristãos reformados não podem se esquecer que o catolicismo romano ainda é cristianismo, e que devemos estar atentos, em termos teológicos, ao que é produzido por eles:

"Protestantes são muitas vezes menos conscientes do que eles tem em comum com Roma, do que aquilo que os separa." (Bavinck apud Wit, 2011, p. 47).
Nestes tempos de especulações a respeito da declaração de renúncia do atual papa Bento XVI, e expectativas conservadoras à respeito da eleição do atual Papa Francisco I, achei uma pérola que fornece muitos "insights" quanto às tensões, que nós cristãos protestantes nos deparamos na missão. 

Refiro-me ao conceito de "missão integral"Sabe-se da frase clássica que está associada ao Movimento de Lausanne: "Cristo todo, para o homem todo."  A "missão integral" considera que a mensagem do Evangelho não tem implicação meramente individual, mas afeta a vida como um todo, incluindo a cultura, a vida e a sociedade.  Quando se retoma a grandeza da missão nestes termos, a expressão "missão integral" se torna um oximoro, afinal é inerente à missão sua integralidadeCristo inaugurou uma nova humanidade nele, e os que se ligam a ele desfrutam dos sinais antecipatórios de uma vida integralmente renovada.
 
Comumente se faz uma separação entre "missão integral" e "ortodoxia doutrinária".  Em parte, isto se deve à influência da "Teologia Latina", uma versão da Teologia da Libertação [alguns não concordarão] entre alguns protestantes da Ibero-América, engajados na missão integral.  Por este motivo, é muito comum a associação imprecisa entre "missão integral"  e "marxismo".  Por outro lado, há os que defendem que é possível fazer missão integral sem a ideologia revolucionária [estou entre estes].  

Uma das produções mais relevantes em língua portuguesa no sentido de integrar ortodoxia doutrinária e missão foi a revisão de Lausanne  realizada por Guilherme de Carvalho¹ no livro "Fé Cristã e Cultura"²A proposta é que a Missão Integral não pode ser orientada por uma teologia minimalista, antes deve se basear em uma clara posição doutrinária.  A propósito, foi exatamente este "minimalismo" que abriu o precedente para a penetração de uma mentalidade esquerdista na recente missiologia protestante.

Mas, então, qual é a tradição dentro da fé cristã reformada que poderia fornecer uma alternativa que integre "ortodoxia" e "missiologia"?  Um caminho possível seria aquele que se encontra na tradição neo-calvinista, associada ao nome de Abraham Kuyper (1837-1920).  Como este é um tema cuja discussão já é tratada no capítulo do livro mencionado, sugiro aos interessados que o consulte.


De fato, não é só a Missão Integral entre evangélicos que sofre esta tensão interna, o mesmo vem sendo experimentado entre católicos há alguns anos.  Em termos gerais, há uma polaridade entre católicos socialmente engajados e aqueles conservadoramente ortodoxos.   O primeiro grupo alega que o segundo é insensível à pobreza e ao sofrimento dos oprimidos, já os últimos, afirmam que os primeiros abraçaram uma ideologia não-cristã para fundamentar sua missão.

A propósito, muitos sabem das antigas tensões teológicas entre o Papa Bento XVI, na ocasião Joseph Ratzinger cardeal e prefeito da Congregação pela Doutrina da Fé, e Leonardo Boff, este expoente da Teologia da Libertação.  Como resultado, Ratzinger elaborou um importante documento, publicado em 6 de agosto de 1984, intitulado: Instruções sobre alguns aspectos da "Teologia da Libertação".


Confesso, que em termos gerais, o texto do documento apresenta importantes contrapontos teológicos àquela teologia conhecida como "da libertação".  E fiquei pensando como poderia ser útil considerar os argumento no texto para o enriquecimento do debate "missão" e "ortodoxia", também no contexto protestante, mesmo sabendo que este não era o propósito de Ratzinger.   Penso isto, pois em geral, os mesmos problemas encontrados na teologia da Missão Integral de inclinação marxista são aqueles da Teologia da Libertação.

Compartilho uma das sentenças encontrada na conclusão do documento de Bento XVI:
"A preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral."
A conclusão emerge de um argumento simples:  o cristianismo sempre foi, desde a era apostólica, sensível aos menos favorecidos.  O cristianismo foi responsável por grandes instituições de acolhimento e restituição da dignidade humana.  Creches, escolas, hospitais e orfanatos estão entre as diversas instituições fundadas por cristãos, sejam católicos ou protestantes.  Para ele, não é necessário recorrer a uma ideologia não-cristã, baseada no mito do progresso, em uma visão ingênua do homem, na libertação pela violência, o dogma da luta de classes, e claro, na negação de Deus, para orientar a tarefa cristã aos menos privilegiados. Aceitar algum tipo de marxismo envolveria a relativização de aspectos doutrinários caros ao cristianismo.   A solução seria retomar a antiga sensibilidade cristã à injustiça, e assim, não abrir mão da fé cristã ortodoxa.

Enfim penso que o atual Papa Francisco I, segue mais ou menos a mesma orientação:  cuidado com os pobres e oprimidos (parte do ethos franciscano, não obstante ser ele jesuíta), sem a tentação do progressismo-liberal.  Há uma esforço ulterior no sentido de integrar ambas facetas (missão e a ortodoxia*) da fé cristã .  Evangélicos engajados na tarefa junto aos menos favorecidos, como eu e outros, sentem o mesmo problema.  E devemos tomar o mesmo cuidado.   Afinal, quando um cristão ama um pobre autenticamente, a glória não pode ser de Marx, mas  de Cristo. Ao menos, é isto que aprendemos quando olhamos, mesmo que timidamente, para a longa história do cristianismo.



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*Claro que o que chamo de ortodoxia aqui, são aqueles pontos convergentes entre a ortodoxia católica romana e protestante.   Principalmente aqueles que ferem profundamente a ética judaico-cristã.


Referências

Wit, Willen J. On the Way to the Living God : a cathartic reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of ChristianityAmsterdã: VU University Press, 2011.