Compartilho a excelente entrevista dada ao programa Academia em Debate da TV Mackenzie. E logo abaixo, ponderações pessoais a respeito do conteúdo da entrevista.
Missão
Integral: ponderações à entrevista de
Jonas Madureira e Filipe
Fontes1
Por Igor Miguel2
Acabei
de assistir a entrevista do mano e Prof. Jonas Madureira e o Prof.
Filipe Fontes disponível neste endereço
https://www.youtube.com/watch?v=34PPk-sCNhU.
Não sou nenhum especialista em temas teológicos. Como digo, da
teologia deleito-me com o que julgo ser fundamental para minha
existência e fé em Cristo. Sou obrigado como cristão a dar razão
para minha fé e missão. Logo, minha posição aqui é passível de
inúmeras objeções ou contra-argumentos, e estou aberto a elas.
Lembrando
que Jonas é um amigo de fé e jornada, e sou admirador de seus
textos e falas, aprendo muito com ele. Ele sabe disso. Quanto ao
Filipe, não o conheço, mas gostei de sua participação na
entrevista. De qualquer forma, considerem meus apontamentos aqui
fruto de um interesse profundo de aprendizagem mútua. E claro, uma
conversa doméstica ao cheiro virtual de um bom café. Sendo assim,
trato ideias e não pessoas, até pelo motivo de respeitá-las.
Primeiro,
considero a entrevista de boa qualidade. As perguntas levantadas
pelo Rev Augustus Nicodemus foram pertinentes e tocaram em aspectos
sensíveis no debate a respeito da teologia da missão integral.
Segundo,
em geral, a entrevista foi precisa nas objeções apresentadas.
Posso dizer que a entrevista é indicadíssima em termos teológicos.
Não tenho dúvida de que há uma dependência de ideologias
orientadas à esquerda entre os propagadores da teologia da missão
integral. Isto a tal ponto, que o termo “missão integral” se
tornou, como observado na entrevista, quase um sinônimo de uma
espécie de “teologia de esquerda”, ou ainda, uma equivalência
evangélica da teologia da libertação. Concordo com a ausência
ou falta de clareza metodológicas entre os proponentes da missão
integral e que há um certo ufanismo anti-imperialista, traduzido,
muitas vezes, em um insistente desejo de elaboração de uma
“teologia sul-americana”. Claramente, reproduções, ou no
mínimo, reverberações ideológicas revolucionárias.
Além
disso, uma objeção forte refere-se à dependência de certa
epistemologia sociológica, e seu discurso como interface científica
de modo a aproximar uma teologia que lida com questões de natureza
social. Eu percebi isso, e não somente eu, que no documento
provisório apresentado na recente Consulta do Movimento Lausanne, em
Atibaia-SP, havia um tom excessivamente sociológico, quando deveria
ser mais teológico. Claro, isto sem desconsiderar as implicações
sociológicas da teologia da prosperidade, objeto daquele documento.
De qualquer forma, um documento que represente o posicionamento da
igreja evangélica brasileira deveria ser elaborado a partir da
gramática da igreja, que é fundamentalmente teológica.
Chamo
a atenção para o cuidado dos entrevistados em afirmar que há algo
aí que a teologia da missão integral detectou que é legítimo, e
que em geral, evangelicais históricos e ortodoxos, ignoram. O
problema da pobreza deve ser tratado por cristãos de alguma forma.
Claro, os encontros de Lausanne eram pra lidar com os rumos da missão
no mundo moderno e globalizado, o que implicava também, em certa
complexidade missiológica. O mundo tornou-se deveras multifacetado,
obviamente, os desafios missionários tornaram-se igualmente
complexos. Logo, isto exigia uma definição geral dos rumos da
Grande Comissão, principalmente ante os novos desafios, o que
incluiria o problema da pobreza.
Também
percebo no discurso da teologia da missão integral a busca por um
apoio em Lausanne, que não considera seriamente todas as implicações
de um “Cristo todo, para o homem todo”. E, ironicamente, às
vezes o que é chamado de missão integral acaba sendo uma missão
reducionista. Pois ao reconhecer a necessidade de uma missão
abrangente, acaba por concentrá-la apenas à dimensão social, o que
pode ser mais uma evidência da influência da sociologia
materialista histórica. Os entrevistados chamaram a atenção para
esta fraqueza.
Agora,
minhas observações. Bem, reconheço que a adoção de uma
distinção entre missão e evangelismo é consistente. Bom lembrar
que o termo “missão” foi elaborado historicamente para descrever
aquilo que Deus confiou à Igreja e aos cristãos como tarefa a ser
cumprida. Um termo exógeno à revelação que sintetiza uma verdade
escriturística: o cristão e a igreja têm uma tarefa a cumprir.
Entretanto, sou favorável a uma percepção mais abrangente (não
digo em importância, mas em aspectos) do termo “missão”.
Guilherme de Carvalho (2009) defende esta distinção também, a
missão é abrangente, inclui tudo aquilo que Deus comissionou o novo
homem recriado em Cristo e que vive sob seu senhorio: o que
abrangeria os mandatos criacionais (religioso, cultural e social), e
claro, o anúncio do Evangelho.
Não
vou aqui repetir, o que todos deveriam ler: a genealogia da evolução
teológica de Lausanne já elaborada e publicada em português, bem
como uma proposta teológica alternativa e reformada ao predominante
e enviesado discurso da missão integral (ibid., 2009). Não vi
ninguém fazendo uma séria objeção ao que me refiro aqui,
considerem seriamente os textos mencionados.
Mas,
enfim, nesses artigos, o autor demonstra que a evolução do debate
sobre a relação evangelismo e ação social passou por várias
propostas: desde umas mais fundamentalistas, que insistiam em uma
clara distinção, quase que ignorando totalmente o cuidado cristão
com os mais pobres; até aqueles em um espectro mais à esquerda (com
alguma aproximação de uma teologia mais liberal), que quase fundia
o sentido de Evangelho com cuidado com os pobres. O que ao norte
seria imediatamente associado ao que é chamado de Evangelho Social.
Por
fim há os que preferem um posicionamento mais sóbrio. O que
significaria que a missão cristã é abrangente e deve ter em seu
escopo o evangelismo. O evangelismo não deveria ser confundido com
ação social, mas esta também não deveria ser colocada em tensão
com aquela. Antes, deveriam ser concomitantes. Afinal, a fé deve
ser acompanhada de obras. O anúncio não deveria estar desassociado
do testemunho. Timothy Keller (2013) também trata esta questão de
forma bem simples, mas com uma precisão magistral: “o evangelho
produz interesse pelo pobre e as obras de justiça dão credibilidade
à pregação do evangelho. Em outras palavras, justificação pela
fé nos leva a fazer justiça, e fazer justiça leva muitos a buscar
a justificação pela fé.” (p.142).
Na
entrevista, parece que não ficou clara esta distinção. De
qualquer forma, alegar que a única tarefa da igreja, ou seja, sua
missão, é exclusivamente “evangelística”, seria ignorar textos
bíblicos sérios. Como, por exemplo, aqueles que dizem que Deus tem
remido para si um povo “zeloso e de boas obras” (Tt 2:14); que
Deus nos criou em Cristo para “boas obras” (Ef 2:10); que as
obras do discípulo fazem os homens glorificar a Deus, como ensinado
por Jesus no Sermão da Montanha (Mt 5:16); e finalmente, a conhecida
exortação de Tiago a respeito das obras como evidências da fé.
Quando
se fala de obras, fala-se de todo mandato adâmico que fora
reconstituído na nova humanidade que emerge de Jesus. Temos que
cultivar um jardim para a glória de Deus. E isto inclui, apesar de
não exclusivamente, o cuidado com o mais vulnerável, como nos
ensinou Jesus por meio da parábola do bom samaritano.
No
que tange a nossa tradição reformada, esta ênfase abrangente da
tarefa cristã, é claramente reconhecida no “amor ao próximo”.
Claro que o melhor que podemos oferecer aos homens é a boa-nova, mas
ela não deveria ser concorrente ou ameaçadora em relação a outras
tarefas implicadas na missão cristã. Que como disse, sou favorável
a uma concepção lato
sensu.
Assim,
repito, deveríamos
reconhecer que a missão é integral sim, independente
do termo estar deveras
intrincado com teologias ideologicamente enviesadas,
ainda assim, deveríamos
considerar o sentido do termo. Uma
missão integral é a tarefa cristã que reconhece que não há
dimensão neutra da existência humana. Reduzir
a missão à dimensão da justiça social, seria
contradizer a natureza integral da missão. Ela toca nesta dimensão,
mas também, opera na academia, na ciência, na política, nas artes
e em todas estas esferas.
Se
reconhecemos que a missão
cristã é
integral, o fazemos por
considerar que Cristo reina
integralmente. Se o senhorio
de Cristo é o que orienta nossa missão, é bom mencionar que
temos subsídio em nossa tradição, em particular a
reformada, para uma
missiologia integral.
Refiro-me, em particular, ao
que encontramos em Abraham Kuyper, ou
no que chamamos de neocalvinismo. Mas, isto seria outra conversa.
Aos
mais corajosos, deixo a indicação dos textos: A Missão
Integral na Encruzilhada: reconsiderando a tensão no pensamento
teológico de Lausanne e O
Senhorio de Cristo e a Missão da Igreja na Cultura: a ideia de
soberania e sua aplicação
(Carvalho,
2009). Pois
estou longe de ser o primeiro a defender uma
tese missiológica neste sentido.
REFERÊNCIAS
CARVALHO,
Guilherme de. A Missão Integral na Encruzilhada: reconsiderando a
tensão no pensamento teológico de Lausanne
e O Senhorio de Cristo e a Missão da Igreja na Cultura: a
ideia de soberania e sua aplicação In.: RAMOS, Leonardo.
CAMARGO, Marcel. AMORIM, Rodolfo. Fé Cristã e Cultura
Contemporânea: cosmovisão cirstã, igreja local e transformação
integral. Viçosa: Ultimato,
2009. p.11-95.
KELLER,
Timothy. Justiça
Generosa: a graça de
Deus e a justiça social. São
Paulo: Vida Nova, 2013.
1 Fiz
um breve comentário no mural do Facebook do amigo Paulo Dib a
respeito do vídeo. Jonas considerou minhas ponderações
sinteticamente lá publicadas. Agradeço pela concordância com os
pontos lá levantados. Este texto é uma versão expandida.
8 comentários:
Muito bom, mano querido! O tempo curto do programa não nos ajudou muito na tarefa de esclarecer inclusive a nossa perspectiva da dimensão holística do evangelho. Abração!
Achei legal o texto. Também acho que tempo foi curto e bão tinha o pessoal da MI para se defender. Acho que deveriam ter chamado o Ari ou o Ed poe exemplo. Acho que podemos ajudar uns aos outros.
Um diálogo unilateral...
Olá Igor, parabéns pelo texto e pela forma humilde e amistosa que tratou a questão.
Logo "de cara" faço minhas suas palavras quando diz que "minha posição aqui é passível de inúmeras objeções ou contra-argumentos, e estou aberto a elas".
Passei algum tempo pesquisando sobre a TMI e o que percebo é que grande parte dos que utilizam o termo (assim como sustentabilidade) não tem a noção do que se trata. Na verdade, hoje em dia é de bom tom falar de MI em algumas rodas evangélicas... Além disso, para não cometermos injustiças, deve ser considerado que os adeptos da TMI não formam um grupo homogêneo. A questão é que há pessoas que buscam viver, ensinar e defender a TMI a partir de uma aproximação clara com os documentos de Lausanne. Por outro lado, há outros mais progressistas que abraçam os documentos de Lausanne, porém acreditam que Lausanne "não avançou o quanto deveria". Sem querer estereotipar, o que facilmente acontece quando tratamos da "teologia do outro", creio que esse viés marxista é mais facilmente percebido no segundo grupo (não sei falar em que proporções). Pessoalmente, me identifico com o primeiro grupo. Creio na primazia da pregação do evangelho na missão (isso é muito conservador para a maior parte do segundo grupo), entendendo que isso não compromete os outros aspectos da missão. Pelo contrário, quando há a compreensão do que é o evangelho, não há possibilidade de viver a nossa missão cristã baseada apenas na verbalização. Essa tensão foi tão grande em Lausanne, que foi realizada uma consulta sobre a relação entre Evangelização e Responsabilidade Social, em Grand Rapids, 1982, sob a presidência de John Stott. Apesar de o material escrito ter sido considerado uma continuação do conteúdo do Pacto de Lausanne e base da TMI, algumas concepções dessa consulta não foram aceitas pelos principais expoentes da TMI, como, por exemplo, considerar a ação social como ponte para o evangelho, bem como a proclamação como tarefa primordial. Enfim, desculpa por ter escrito tanto...
Assim diz o parágrafo V do Pacto de Lausanne:
Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada. Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando as pessoas recebem Cristo, nascem de novo em seu reino e devem procurar não só evidenciar mas também divulgar a retidão do reino em meio a um mundo injusto. A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta (STOTT, 1983, p.27).
Para aproveitar a discussão, acrescento o que um autor disse: Prescisamos "desfazer o nosso mau hábito de desconectar o mandato cultural da Grande Comissão. Mesmo aqueles que afirmam ambos muitas vezes os vêem como não relacionados, não conseguindo discernir sua conexão íntima. Mas o que é o o evangelho senão o chamado e convite de Deus para sermos restaurados e renovados como portadores apropriados da imagem de Deus -- que carregam sua imagem por desdobrar o potencial da criação em cultura corretamente ordenada?"
http://danieldliver.blogspot.com.br/2012/12/cristo-e-cultura-igreja-e-criacao_11.html
Oi Igor, gostei muito do seu comentário, principalmente por destacar a integralidade da missão, que não deve ser entendida apenas como Proclamação, mas Serviço também, que se expressa em todas as áreas sobre a qual Cristo é o Senhor.
Concordo com o Jonas sobre a ausência do método na TMI, mas penso que seja um problema solúvel, no entanto percebi uma caricatura da TMI em alguns pontos, tal como o fato dela se preocupar apenas com o social, quando os seus pressupostos vão além deste esfera, haja vista tantas outras pessoas que agem em tantas outras áreas sob a influência dela.
O Dr. Augustus ao que parece adotou a pratica do “acende a fogueira e se esconde pra não se queimar”, ou seja, coloca o tema em discussão e depois desaparece do tema deixando suas acusações prejudicar seus alvos.
O que ele não tolera na verdade é que outra pratica seja difundida senão a “teologia calvinista”. Bem covardia por covardia, pois a atitude assemelha muito com a que Calvino teve com Serveto.
Olá Ivan,
Obrigado pelo comentário. Não acho que a coisa foi neste nível não. Basta dar uma boa olhada e ver o tom que o Rev Nicodemus assumiu em uma carta pública. O mesmo vale para o Ariovaldo. Ambos se posicionaram sem apelar para o tom "beligerante" que você apresentou aí. Menção a Serveto foi desnecessária.
Abraços,
Igor
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