18 de mai. de 2016 | By: @igorpensar

Neocalvinismo e Apartheid

Texto de Rodolfo Amorim (L'Abri)
 
Vez ou outra surge uma pergunta sobre a relação entre neocalvinismo e o regime do Apartheid na África do Sul. E algumas pessoas aqui e ali tentam denunciar uma relação causal direta entre os dois, ou pelo menos sugerindo uma relação forte entre estes.Sugiro discutirmos algo deste ponto por aqui, sendo de extrema relevância para a incorporação desta tradição em nosso país, envolvendo todos os interessados e aderentes. Creio que é uma responsabilidade nossa entender melhor esta questão.Sugiro ao fim uma importante leitura sobre o tema. É uma tese sobre a relação entre Teologia Reformada e Apartheid. Há um capítulo específico sobre a filosofia reformacional.De minhas leituras sobre este importante tema, tenho algumas considerações, ainda não conclusivas. Gostaria que os interessados comentassem a respeito, concordando ou discordando, e contribuindo com novas informações:
 
1) O nacionalismo Bôer e Afrikânder e a ideia de uma nação eleita por Deus, derivando do Antigo Testamento a noção de pacto com um povo específico, precede em séculos o surgimento da filosofia reformacional holandesa, refletindo em sua origem um ethos holandês específico, baseado nas crônicas do estabelecimento da própria Holanda como país independente (o próprio hino nacional reflete esta ideia de nação fundada no pacto com Deus). Ou seja, uma teologia baseada nas promessas e pactos específicos de Deus para Israel enquanto nação foi re-inserida na narrativa Bôer da África do Sul desde o século XVII.
 
2) A identidade Bôer foi modificada quando da violenta chegada e domínio dos ingleses no século XVIII, gerando nestes uma identidade ainda mais coesa de nação (trekers), alimentando um forte revanchismo contra as forças externas que desejassem lhes tirar da terra, dividindo a própria Igreja Reformada GK na mais nacionalista NGK. Esta revanche foi finalmente 'conquistada' com a chegada ao poder do Partido Nacionalista em 1948, a gradual retirada dos ingleses, e a implementação do apartheid.
 
 3) Abraham Kuyper não reflete em sua obra escrita e/ou como líder holandês as ênfases do pensamento racista da virada do século XIX para o XX sendo, pelo contrário, uma exceção em tempos de profundo pensamento racista na Europa de então. Sua introdução à obra Calvinismo atesta disso, louvando a presença de várias raças, nações e miscigenação no contexto dos EUA como um ponto forte daquele país, refletindo a riqueza de diversidade do próprio Criador. Em relação à causa Bôer, Kuyper percebe que pelo distanciamento dos holandeses africanos de sua proposta teológica e política não haveria como uma representação fiel de seu projeto se manifestasse na África do Sul. Quando primeiro ministro promoveu uma resolução ética que chamava os holandeses Bôers a servir as comunidades mais vulneráveis com as bençãos que porventura viessem a desfrutar, opondo-se a propostas colonialistas e de exploração. Em relação à denominação reformada livre que conduzia, defendeu a presença de uma congregação multirracial nos domínios africanos, expressando a igualdade fundamental entre os homens, princípio teológico claro a ele.
 
4) A chegada ao poder do Partido Nacionalista Afrikânder e sua liderança em Daniel François Malan, em 1948, não têm qualquer relação direta ou indireta com o movimento inaugurado por Kuyper, na Holanda. A tradição romântica de Fiche e Herder, inspiradoras do nacionalismo europeu pré 2ª Guerra, era o principal veículo de articulação das pretensões Afrikânder e de Malan, sobretudo na afirmação do conceito romântico de exaltação do "volk" . Este conhecia o projeto de Kuyper e reinterpretou alguns de seus insights, principalmente o conceito de "verzuiling", ou pilarização, que enquanto em Kuyper tinha base em distinção ideologias e num pluralismo democrático, foi re-interpretado com forte ênfase de separação racial nacionalista em nada refletindo a proposta kuyperiana.
 
5) A denominação reformada que concentrou o movimento apartheid era a Nederduits Gereformeerde Kerk (NGK), e não a The Gereformeerde Kerk, onde estavam reunidos os adeptos da filosofia reformacional na África do Sul, ligados a Universidades como Potchefstroom, organizados nos moldes da Vrij em Amsterdã. Ou seja, a influência teológica do neocalvinismo não foi central para a igreja dos Bôers, ou Afrikânders.
 
6) Alguns pensadores neocalvinistas da África do Sul, como H.G. Stoker, reelaboraram alguns pontos da filosofia de Dooyeweerd, dando a esta um tom mais voltado à cultura e sua expressão por comunidades humanas distintas, tirando desta algo de sua afirmação de princípios considerados "liberais em excesso", como o de direitos individuais, igualdade fundamental e democracia.
 
7) Os neocalvinistas holandeses foram vozes de denúncia, no contexto holandês, contra as práticas do Apartheid pós 1948, não havendo entre estes apoio reconhecido a qualquer de suas práticas.
 
8) Algumas expressões do Apartheid, como a extrema desigualdade das comunidades negras nativas em relação às brancas de ascendência europeia, ocorreu não apenas (e isso é muito importante e polêmico, devendo ser bem entendido) por uma ação de opressão e exclusão por parte dos Afrikânders (sim, esta existiu, como na divisão injusta das terras nos acordos feitos ainda pelos ingleses no início do século XX), mas também por uma clara incapacidade da cultura dos nativos de promover prosperidade nos contextos em que viviam. E isto revela um elemento de distinção cultural, e de visão de mundo, forte entre as comunidades que não pode ser ignorado em seus resultados práticos. Ainda hoje este é um tema cercado de tabus na África do Sul, onde comunidades negras nativas apresentam médias altíssimas de contaminação com o vírus HIV, chegando a 80 % da população, ao mesmo tempo em que comunidades brancas de descendentes de europeus na mesma área apresenta percentuais de 3 a 4 %. A visão de família e sexualidade é crucial no entendimento deste tema. 
 
Ou seja, a diferença em valores das culturas contribuiu, e muito, para a desigualdade que chocou o mundo. Mas este aspecto não é aceito pelo público internacional, que dirá pela mídia que aborda o tema.Se houverem mais contribuições de esclarecimento quanto a este ponto seria bom discutirmos por aqui.Esta é a tese de Gwashi Freddy Manavhela, da Vrij de Amsterdã:http://dspace.ubvu.vu.nl/bitstream/handle/1871/13313/9017.pdf?sequence=5

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