22 de dez. de 2008 | By: @igorpensar

Diálogo: o logos em via de mão dupla

Por Igor Miguel

Martin Buber, acima de qualquer rotulação, pode ser qualificado como um 'filósofo existencialista'. Mas, sua filosofia é acima de tudo monoteísta-judaica. Buber é o reflexo de um antigo modus cogitare bíblico, com raízes profundas em uma civilização que derruba os mitos e problematiza a existência de múltiplas forças "espirituais" que "animam" as coisas.

Buber retoma a visão de mundo dos chassidim, o desdobramento último de um religião ordinária e consegue retirar da inteligência dos 'rebes' princípios que tocam as profundezas do que geralmente considera-se superficialidade, trivialidade ou rotina.

Para Buber as coisas não são 'coisas' autônomas, elas são por causa da palavra. Para Buber, a palavra está antes das coisas e o que existe, só existe enquanto e a partir da palavra.

A relação sujeito-objeto é denominada por Buber por "EU-ISSO", uma relação "monológica", pois não se espera uma resposta do ISSO. Por outro lado, há a estrutura EU-TU, enquanto relação dialógica, o logos (palavra) que se emite e que se recebe.

Para Buber, o EU enquanto aquele vai ao encontro do TU, só é EU (existente) quando se relaciona ou se vê no TU. Sem o TU, ou sem o diálogo, não há humano. Por outro lado, qualquer primazia ao ISSO, resultaria em coisificação*, em uma não-humanização e finalmente a não-existência.

"Se o homem não pode viver sem o Isso, não se pode esquecer que aquele que vive só com o Isso não é homem" (BUBER, 2007, p.37).

O Isso precisa ser compreendido, a partir da dialogicidade EU-TU, do diálogo, de uma perspectiva obviamente humana. Porém, esta relação estrutura-se pela "palavra", que ordena, que filtra a realidade, que evoca sentido nas relações inter-subjetivas ou inter-objetais.

O sacramento do diálogo encontra-se em sua etimologia, uma palavra que vai e que volta. Exatamente este 'logos' que sai do emissor, espelha-se, refrata-se e volta ao EU, que cria os vínculos que remetem ao diálogo primevo entre o ser que dirige a palavra e o que a traduz e a devolve como palavra subjetivada, humanizada.

O diálogo não acontece necessariamente pelo "dito", pela locução e pela sonoridade, ela se traduz em palavras que já estão e são decodificadas ou traduzidas por gestos, olhares, abraços, beijos ou intercurso corporal. O diálogo é esse vínculo romântico, sedutor na relação com o outro, essa mensagem que vai, mas volta como um 'querer-ouvir' e 'ser-ouvido', alteridade no sentido mais profundo da palavra.

Em uma realidade em que as pessoas servem às coisas e aos objetos, o diálogo é um interessante referencial para elaboração de ethos para a vida moderna, pois converte o objeto e a técnica em servos do humano e não senhores destes. A burocracia enquanto racionalização, controle das coisas e mecanismo de vigilância do fluxo dos valores objetais, pode ser restruturada a partir de pequenos gestos dialógicos que reconstituam a racionalização, humanizando-a. Conforme Buber (2007):

"Não há fábrica nem escritório tão abandonado pela criação que neles um olhar da criatura não se possa elevar de um lugar de trabalho ao outro, de uma escrivaninha à outra, um olhar sóbrio e fraternal, que garanta a realidade da criação que está acontecendo: quantum santis. E nada está tão a serviço ao diálogo entre Deus e o homem como esta troca de olhares, sem sentimentalidade e romantismo, entre dois homens num lugar estranho".

O grande perigo de um homem que estrutura sua existência pela relação em que o ISSO prevalece sobre o EU, é que esse sujeito tem sua percepção da realidade distorcida. A relação EU-ISSO é sem reciprocidade e resposta, é de natureza monológica. Um sujeito acostumado com o objeto silencioso, relaciona-se com outros homens a partir desse paradigma, tratando-os de forma silenciosa, como sujeitos sem resposta, sentimento ou competência. Esta relação objetal é cruel, pois desaloja a subjetividade do outro, arranca-lhe a "alma", rouba-lhe sua preciosidade humana e singularidade. Resultado? Um homem truculento, bruto e insensível.

Por outro lado, o homem dialógico é provocador, apaixonado, fluido e romântico. Permite-se e abre-se para o outro, deixa-se levar, mas também deixa-se ir, devolve-se ao outro enquanto si. O sujeito dialógico é curioso, quer ouvir e apaixona-se pelo que o outro tem a dizer e a entregar. Ele também espera uma resposta humana, não elogios demagógicos ou de natureza bajuladora, mas a verdade que liberta, voz e palavras de uma natureza familiar. Esse é o o proprietário da palavra que vai, mas volta.

Ainda assim, o homem não vive sem o ISSO. Mas, como lidar com ISSO sem que ele se apodere do humano? Lidando com o ISSO sob uma perspectiva humana. Uma abordagem humana sobre o ISSO, implica em lidar com a realidade de forma generosa e sustentável, implica em uma postura ecologicamente humana. O que não se traduz em termos animistas ou panteístas, como se entidades autônomas estivessem na materialidade ou na natureza, que com certeza não é um ente orgânico - Gaia. Mas, entender que pela palavra tudo foi ordenado a serviço e sustento do humano, mas pela mesma palavra imprimir na objetividade a subjetividade.

O homem tem um nome, que se traduz em termos de subjetividade e identidade, por isso pela palavra pode nomear o ISSO, imprimindo nele sua humanidade, sua generosidade dialógica, pela palavra que vai, mas volta. O logos*** em via de mão dupla!

formatis igitur Dominus Deus de humo cunctis animantibus terrae et universis volatilibus caeli adduxit ea ad Adam ut videret quid vocaret ea omne enim quod vocavit Adam animae viventis ipsum est nomen eius - Gênesis 2:19**.

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REFERÊNCIAS

BUBER, Martin. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2007.

_____________. Eu e Tu. 10 Ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2006.

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*Coisificação: O termo não é usado por Buber, apesar do processo "coisificação" estar presente indiretamente em suas idéias. Adaptação do termo "reificação" usado por Karl Marx. Refere-se ao processo de alienação, em que o ser humano enquanto força produtiva, se marginaliza em relação à produção, tornando-se nulo, objeto e coisa, descaracterizando as matizes que o fazem humano.
** Tradução : "Havendo, pois, o SENHOR Deus formado da terra todos os animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles".
*** Uso o termo em seu sentido simples em grego λογος (lógos), simplesmente como 'palavra', mas também ligado ao sentido que São João dá ao termo, associado ao hebraico דבר (davár), em que a 'coisa' e a 'palavra' estão semanticamente integrados.


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